A mulher e seu tempo

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Uma mulher tem o direito de subir ao cadafalso; ela deve ter também o de subir a uma tribuna”. Olympe de Gouges

A Revolução Francesa (1789-1799) foi pródiga na produção de personagens. Dentre os mais variados tipos e comportamentos que contribuíram para que a França fosse o epicentro da explosão sócio-política do final do século 18, deve-se aludir a uma figura feminina que contribuiu com a sua própria existência para que a ação libertária da mulher, mais cedo ou mais tarde, atingisse seus objetivos.

Esta mulher passou à posteridade conhecida pelo nome de Olympe de Gouges, cujo nome verdadeiro era Marie Gouze. Ela nasceu em 1748 em Montauban, no Sul da França. Filha de uma família modesta, seu pai era açougueiro e a mãe, serviçal. Alguns historiadores atribuem a sua paternidade adulterina a um nobre. Aos 16 anos, casou-se com um homem muito mais velho.

Um ano depois, ela deu à luz o seu único filho. O matrimônio não durou muito. Logo em seguida ao parto, ficou viúva. Após, ela fugiu para Paris, mudou de nome e começou a apresentar-se no palco. Típica mulher de classe média que foi, inspirada pela Revolução sem haver apreendido sua essência, ela habituou-se a escrever peças e panfletos, conclamando pela abolição do tráfico de escravos e pleiteando que a mulher tivesse acesso à função pública e ao Exército.

A efervescência daqueles idos de 1789 na França não permitia que alguém permanecesse indiferente ao que estava acontecendo. O historiador George Rudé afirma que “em outubro de 1789 enquanto os cavalheiros da Assembleia Constituinte falavam interminavelmente sobre reforma e constituições, as mulheres pobres de Paris – as peixeiras, lavadeiras, costureiras, vendedoras, criadas e mulheres de trabalhadores, levantaram-se espontaneamente.

Estas ‘sans culotes’ femininas organizaram uma demonstração e marcharam para a prefeitura de Paris exigindo pão barato. Elas envergonharam os homens marchando sobre Versalhes e trazendo de volta o rei e a rainha sob uma virtual prisão domiciliar”.

Quando a Assembleia Nacional francesa debatia a redação do texto a ser aprovado da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Olympe de Gouges entendeu que aquele que estava sendo discutido era muito machista e o que se continha naquela manifestação não abrangia os direitos que deveriam ser atribuídos também à mulher.

Inconformada, ela redigiu uma Declaração e enviou à Assembleia Nacional, a fim de ser acrescida ao documento oficial. A sua proposta, lida perante a convenção, valeu-lhe grosserias: “Ela que vá antes tricotar calças para os nossos bravos revolucionários”, disseram.

Olympe de Gouges, além da Declaração, redigiu a minuta de um “Contrato Social entre Homem e Mulher”, cuja leitura deixa antever que as suas ideias estavam muito além do seu tempo, pois nem o Código Civil Francês de 1804 e nem o nosso de 1916 ousaram estabelecer todos os preceitos que ela propugnava já em 1789.

O conteúdo deste contrato matrimonial em oposição às regras do matrimônio feudal de então e imposto pela Igreja, regulamentaria a convivência dos parceiros, a sociedade patrimonial entre ambos e a situação dos filhos. Este documento dá a prova do espírito inovador daquela mulher.

Dizia a proposta do Contrato:

“Nós, (Fulano) e (Sicrana), movidos por nossa própria vontade, nos unimos pela duração de nossas vidas, e pela duração de nossas inclinações mútuas, sob as seguintes condições: Nós pretendemos e desejamos tornar nossos bens comuns, reservando, entretanto, para nós mesmos o direito de dividi-los em favor de nossas crianças e daqueles para os quais possamos ter uma inclinação particular, reconhecendo mutuamente que nossa propriedade pertence diretamente às nossas crianças, qualquer que seja a cama da qual tenham provindo, e que todas elas, sem distinção, têm o direito de usar o nome de seus pais e mães que os tenham reconhecido, e nos responsabilizamos em subscrever a lei que pune a renúncia ao próprio sangue.

Outrossim, nós nos obrigamos, em caso de separação, a dividir nossos bens e a reservar antecipadamente a parcela que a lei indicar para nossas crianças, e na ocorrência de uma união perfeita, aquele que morrer será despojado de metade de suas posses em favor de suas crianças, e se alguém morrer sem descendência, o sobrevivente herdará por direito, a menos que a pessoa moribunda tenha disposto metade dos bens comuns em favor de quem ele julgou merecedor.”

Revoltada com o regime de terror implantado pelos revolucionários, Olympe ataca duramente Marat e Robespierre, que passam a considerá-la “perigosa demais”. Seu envolvimento com a política provoca antipatia e perseguição até no meio intelectual que a acolhera.

Sua coragem é chamada de loucura e heresia. Mas Olympe de Gouges defende seu ideal até o sacrifício de sua vida. Ela morre guilhotinada em Paris, no dia 3 de novembro de 1793. Nesse ano, as mulheres são proibidas de se associarem e seus clubes são extintos na França.

No dia seguinte à sua execução, o jornalista de Le Moniteur, Chaumette, lhe dedica a seguinte homenagem: “Lembrem-se de Olympe de Gouges, a primeira a instituir as associações de mulheres e que abandonou os cuidados do lar para se intrometer na República, de quem a cabeça rolou sob o ferro vingador das leis.”

* Renato Levy é advogado em Santana do Livramento/RS

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